sol quente queimava minhas costas. As marcas
da exposição ao sol durante todo o fim de semana estavam bastante evidentes nas
maçãs vermelhas do meu rosto.
Fora um final de semana agradável. Uma viagem
incrível. Mas que agora chegava ao fim. Estava curtindo minhas ultimas horas
livres na praia antes de partir de volta para a minha vida pacata em uma
fazendinha em Minas Gerais.
Não, eu não nasci para viver no interior,
alimentando galinhas e tirando leite de vaca. Este aqui é o meu lugar. No sol
escaldante de uma praia no Rio de Janeiro, de onde eu não deveria ser obrigada
a partir.
— Nanda, está na hora de voltar para o hotel. Nosso
voo sai em poucas horas. Se apresse — disse mamãe, acabando com qualquer
vestígio de felicidade ainda existente em mim.
— Infelizmente — resmungo, levantando-me e seguindo
em direção ao hotel.
Não demoro muito para arrumar minhas malas, afinal
eu não levara muita bagagem. Viajei com meus pais e meu irmão mais novo para
passar apenas uma semana curtindo férias ao sol — que infelizmente acabara.
Uma hora depois estamos seguindo em direção ao
aeroporto. Não falo uma só palavra. Não me dou ao trabalho de sorrir. Não estou
feliz e não queria estar voltando para o meu inferno particular.
Seria ótimo me libertar disso tudo. Não precisar
cuidar de animais fedorentos ou de plantações enormes. Poder viver em um local
aonde eu queira estar e não precisar trabalhar em algo que eu não quero.
— Você pode ser livre — disse o garoto sentado ao
meu lado no ônibus, como que lendo meus pensamentos.
Fiquei chocada demais para responder qualquer coisa.
Isso só podia ser uma coincidência muito estranha. Ele não podia ter lido a
minha mente! Esse tipo de coisa só acontece em filmes bizarros e romances sem
noção.
— Tome — disse o garoto após passar algum tempo em
silencio, empurrando uma espécie de diário surrado para mim. — Pegue. Tudo o
que você precisa está aqui.
Eu hesito por vários segundos antes de estender
minha mão e pegar aquele diário com uma estranha capa preta.
Abro o diário e o folheio. Está repleto de anotações
estranhas e textos que não se parecem em nada com o meu idioma.
— Porque você me deu... — interrompo a frase ao
perceber que o garoto não está mais ao meu lado.
Olho para os bancos atrás de mim em busca do garoto
misterioso. Não há sinal dele.
O.K. Isso foi muito estranho. Ele deve ter descido
logo após ter me dado o diário.
A volta para casa também não foi muito agradável.
Mas ao menos dormi a viagem inteira.
Fui direto para o meu quarto ao chegar.
Após tomar uma longa ducha fui até os fundos da
casa, onde meu pai cultivava algumas macieiras. As preciosidades do papai.
Levei o diário que ganhara comigo.
Abri e tentei ler a primeira página, mas estava em
um idioma que eu não conseguia entender.
Virei as páginas e encontrei uma espécie de feitiço.
Estava escrito em inglês. Eu entendia o suficiente para traduzir alguns textos.
How to set free yourself
Era o titulo no alto da folha. Li e percebi que se
tratava de alguma espécie de feitiço satânico com sangue. Parecia tentador. Mas
eu não acreditava em nada esotérico. Nada que envolvesse deuses, demônios ou
anjos.
Voltei para casa só para receber a missão de
ordenhar as vacas. Retirei-me sem protestos. Sem dizer uma palavra. Essa era a
sentença por ter nascido em uma família de fazendeiros e eu já a aceitara.
Estava fazendo o meu trabalho tranquilamente quando
meu irmão resolveu tirar um pouco do seu tempo para me infernizar.
— Você está fazendo isso errado — disse ele após
passar vários minutos assobiando. E ele sabe que eu detesto isso.
— Então faz você, já que você faz tudo certinho! —
disse chutando o banco em que estava sentada antes de correr para os pomares.
Inferno! Sou obrigada a conviver com pessoas que não
me entendem e a fazer coisas que eu não suporto! Chega! Não era pra ser assim.
Abro o diário que escondi embaixo do meu pomar
favorito e procuro a página com o único feitiço em inglês.
Leio atentamente e depois procuro alguma coisa
afiada. Encontro um espelho abandonado em uma das janelas. Eu o quebro e
escolho o pedaço mais afiado. Faço um corte no pulso esquerdo. Não muito
profundo para acertar uma veia, mas fundo o suficiente para sangrar bastante.
Desenho no chão com o meu sangue o símbolo mostrado
no diário e digo algumas palavras em latim cujo significado eu desconheço.
Espero algo acontecer. Mas nada acontece. O corte
ainda sangra. Sinto uma vertigem que pode ter sido causada pelo fato de eu não
ter me alimentado durante todo o dia e a exaustão da recente viagem.
Sento-me no chão e espero a vertigem passar. Não passa.
Sinto uma dor na parte lateral da minha cabeça e tudo fica escuro.
— Ela está voltando! — fala uma conhecida voz
infantil que soa distante.
Tento me levantar, mas uma mão pressiona meu ombro
de volta para baixo.
— Espere a vertigem passar completamente antes de se
levantar — diz mamãe, suavemente.
A parede a minha frente entra em foco e eu percebo
que estou no meu quarto. Há um curativo no meu pulso. Droga! Além daquele
feitiço idiota não ter dado certo a minha família vai pensar que eu sou uma
louca suicida!
Sentei-me na cama e vi que todos me encaravam. Papai
com uma tênue raiva, meu irmão confuso e mamãe alarmada.
— O que deu em você? —diz mamãe, começando seu
discurso. — Você tem tudo. Sempre lhe demos todo o nosso amor, sempre teve tudo
o que precisava pra sobreviver. Teve mais mimos que o seu irmão. Então, por
quê?
— Não tentei me matar — defendo-me.
— Ah não!? — ironiza mamãe. — Você quebrou um
espelho e seu pulso estava cortado, sangrando quando seu irmão a encontrou. Não
tente me convencer que isso não foi uma tentativa de suicídio, porque vai ser
muito difícil de acreditar! Vou levar você a um psicólogo amanhã.
— É isso o que eu odeio em vocês! — esbravejo. —
Vocês vivem controlando a minha vida e tomando decisões por mim sem se
importarem com o que eu penso ou o que eu quero! Porque você não desce e passa
o dia inteiro na cozinha preparando coisas que você considera saudável, como
sempre faz?
Percebo o olhar da minha mãe mudar de alarmada, para
confusa e em seguida para enraivecida. Para depois seu olhar ficar vidrado. Ela
parecia não estar presente. Em uma espécie de transe. Como que hipnotizada.
E então ela saiu do quarto e eu ouvi seus passos
sumirem no corredor.
— Porque você é tão insensível? — pergunta meu
irmãozinho e sai correndo do quarto.
Meu pai limita-se a balançar a cabeça negativamente
e sair do quarto em seguida.
Passo um tempo analisando o curativo em meu pulso
antes de descer para os pomares. Mamãe está cozinhando na cozinha e meu pequeno
e irritante irmão tentando convencê-la, em vão, a parar.
Meu irmão vem atrás de mim chutando todas as pedras
que encontra no caminho.
— O que você fez com a mamãe? — pergunta ele,
lágrimas rolando por seus olhos. — Depois que você gritou com ela, ela não
parou de cozinhar seus sanduíches vegetarianos.
— Eu não fiz nada. E me deixa em paz — grito de
volta.
Só então minha mente parece processar o que ele
acaba de dizer. Será que foi pelo o que eu disse que mamãe estava na cozinha
preparando sanduíches?
Hora de fazer um pequeno teste.
— Felipe — chamo e meu irmão olha para mim. — Eu
quero que você vá até a cozinha e traga o pote de biscoitos onde mamãe esconde
algumas moedas e só você sabe onde está.
Os olhos dele ficam vidrados. Assim como os da mamãe
pouco antes de sair do meu quarto.
Vejo meu irmão voltar para a casa, indo em direção a
cozinha. Ele volta com um pequeno pote de biscoitos que está recheado com
várias moedas de 1 real.
Talvez aquele feitiço estranho não tenha dado tão
errado afinal.
Espero a noite chegar e todos irem dormir para me livrar
de todas as minhas fotos existentes na casa. Ou qualquer coisa que pudesse
provar a minha existência naquele local.
Na manhã seguinte convoco toda a família para a sala
de estar.
— Vou ser bem direta — digo focando o olhar nos
olhos de cada um. — Eu estou indo embora. E no momento em que eu passar pela
porta, vocês irão se esquecer de mim. Vocês nunca tiveram uma filha. Apenas o
Felipe. E ele nunca teve uma irmã. O quarto que era destinado a mim é o seu
quarto de hospedes. Vocês vão continuar vivendo suas vidas como sempre viveram,
mas ignorando a minha existência. Como se eu nunca tivesse nascido.
Seus olhos ficam vidrados e eles assentem. Eu pego a
mala que deixei próxima a porta e parto em minha viagem de volta ao Rio de
Janeiro, utilizando meu novo dom para hipnotizar as pessoas e garantir que eu
chegue ao meu destino.
Férias eternas. Ou o quanto uma vida humana pode ser
considerada eterna. Ninguém para me dizer o que fazer, ou o que é certo e
errado. Ninguém para tomar decisões por mim.
A primeira coisa que faço é me hospedar no melhor
quarto do melhor hotel da cidade. Agora posso curtir férias dignas.
Após alguns drinks, beijos a beira da piscina do
hotel e festas que duram até a madrugada, eu me canso das minhas férias na
cidade maravilhosa. Hora de procurar um novo destino. Quem sabe uma viagem
internacional desta vez?
Após pensar e repensar em todos os locais que
adoraria conhecer, decidi visitar o Havaí primeiro. Estaria apenas trocando uma
praia por outra, mas seria uma ótima maneira de praticar o meu inglês.
Não foi difícil “convencer” alguém a me levar até o
Havaí. Escolhi o melhor hotel e o melhor quarto disponível. Quando você tem o
dom de fazer as pessoas realizarem todos os seus desejos, ninguém acha estranho
encontrar uma garota de 17 anos viajando pelo mundo sozinha.
Escolhi um biquíni na loja do hotel e convenci o
atendente a me dá-lo de brinde. Fui para a praia caminhar a beira do mar. Eu
não precisava usar meus dons para arrumar uma companhia atraente do sexo
oposto, meus outros atributos fariam isso por mim.
Fui até o bar do hotel e pedi a especialidade local.
Continha uma pequena quantidade de álcool. Nada que pudesse me deixar
embriagada facilmente. Tomei dois drinks e até um rapaz sentar-se ao meu lado.
— Olá — disse ele, em um português sem sotaque
algum.
— Oi — disse, enquanto tomava o primeiro gole da
minha terceira bebida.
Virei-me para ver o rosto do garoto com quem eu
falava e um tremor percorreu minha espinha. Ele possuía olhos e cabelos negros,
e uma pele tão pele tão branca que parecia inumano.
Era o mesmo que me dera o diário com o feitiço que
me trouxera aqui. O que será que ele queria?
— Vamos dar uma volta na praia? — convidou ele com
uma voz doce, inebriante, irresistível.
Antes mesmo que pudesse perceber, minha mão deixou o
drink no balcão do bar e meus pés seguiam o garoto estranho pela praia. Era
quase como que se eu estivesse hipnotizada. Era assim que as pessoas se sentiam
quando eu as induzia a fazer alguma coisa?
— Fernanda, não é mesmo? — perguntou ele e eu
assenti com a cabeça. — Deixe-me contar-lhe uma coisa: Você foi capaz de
conseguir um dom que poucos outros mortais foram capazes antes. Você recebeu o
mais precioso de nossos dons. E eu devo parabeniza-la por isso. Mas um alto
feitiço como este tem um alto preço. No momento em que você aceitou esse poder
aceitou também sua sentença: Vagar pra sempre sem alma pela terra levando almas
ao inferno. Você pode fazer tudo o que quiser, mas sua humanidade morre agora.
Uma parte de mim está em você e essa parte irá te controlar até o fim dos
tempos. Você é a mais nova ferramenta do inferno para a perdição dos homens.
Não consigo dizer nada. Consigo apenas assentir para
aquele estranho garoto demônio. Aceitando minha sentença. Eu fora egoísta e
agora pagava por isso.
Meu corpo estava totalmente fora do meu controle.
Nos meses seguintes eu assisti a vários homens definharem por minhas próprias
mãos. Meu corpo era tocado pela maioria deles sem que eu pudesse me impor.
Apenas assistia enquanto meu corpo fazia coisas que eu não podia controlar.
Enquanto drenava vidas e as mandava para o inferno.
Esse era o preço que eu pagava por ser infantil e
egoísta. Eu tinha tudo o que eu precisava. Uma família que me amava, um lugar
para chamar de lar. Um irmão que precisava de mim e eu simplesmente abandonara.
Eu merecia o que estava acontecendo comigo. Merecia
vagar pela terra pelo resto da minha existência enquanto assistia a mim mesma
refletida nos olhares assustados das vitimas que eram mortas pelas minhas mãos.
Altos feitiços tem um alto preço. Eu estava apenas
pagando pelo minha ambição.
E é assim que viverei eternamente, ou até alguém
decidir matar a esse corpo jovem, bonito e imortal.
Fechei meus olhos e aceitei minha sentença. Não
havia nada que eu pudesse fazer para voltar atrás e desfazer esse terrível
erro. Nada mais importava agora. Eu estava morta, embora meu corpo ainda
andasse pelo mundo inteiro, contra a minha vontade.